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Luiz Alberto de Abreu

Luiz Alberto de Abreu atua em teatro no ABC. Imagem do Depoente
Nome:Luiz Alberto de Abreu
Nascimento:05/03/1952
Gênero:Masculino
Profissão:dramaturgo
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:São Bernardo do Campo (SP)

Trascrição do depoimento de Luiz Alberto de Abreu em 08/07/2005
 

Depoimento de LUIZ ALBERTO DE ABREU, 53 anos.

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 08 de julho de 2005.

Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC 

Entrevistadores: Herom Vargas e Eduardo Chaves.

Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.

 

Pergunta: Por favor comece pela data e local de seu nascimento.

 

Resposta:

Nasci em 1952 em São Bernardo do Campo, em Nova Petrópolis.

 

Pergunta: Como era a sua família, seus pais, irmãos, sua família?

 

Resposta:

Minha família era de imigrantes mineiros, que chegaram aqui em 1947. Meu pai era carpinteiro, marceneiro e veio para cá, de Diamantina, uma cidade no Vale do Paraíba, muito pobre até hoje. Imaginem como era na década de 40. Com a decadência da mineração, eles vieram para cá. Era uma família muito grande. Eles vieram para cá com oito filhos, aqui nasceram mais dois, minha irmã que está com 55 anos e eu, que nasci em 1952. Meu pai veio atraído pelas fábricas de móveis e logo que chegou começou a trabalhar numa fábrica de móveis e trabalhou durante muito tempo. A gente morou... Eu não morei, mas minha família morou, primeiro, no Baeta e depois se transferiram para Nova Petrópolis, que na verdade não existia. Era o final da cidade. São Bernardo era muito pequena. Na verdade só tinha o Baeta e o centrinho, onde passava a Marechal Deodoro, que ainda nem tinha calçamento, e os limites da cidade.

 

Pergunta: A Nova Petrópolis era a periferia da cidade?

 

Resposta:

Não era nem periferia. Era um matagal, um descampado, bem no arrabalde mesmo.

 

Pergunta: Onde o senhor morava era chamado de chácara?

 

Resposta:

Não. Eram loteamentos que estavam sendo abertos. Dali já era direto que tinha as olarias, na parte onde hoje é o final do Baeta, Vila São Pedro, que eles chamavam de Simonsen, porque era do Simonsen aquela região. Ali acabava São Bernardo.

 

Pergunta: Sua mãe não trabalhava?

 

Resposta:

Não. Ela tinha 10 filhos, depois que eu nasci, para cuidar. Meu pai que trabalhava na Pelosini, na Brasmotors, onde é Wal-Mart, que era uma fábrica de geladeiras.

 

Pergunta: Ele trabalhava com marcenaria?

 

Resposta:

Sempre nessa área. Desde Minas ele era artesão.

 

Pergunta: Como era, o senhor consegue descreve a cidade de São Bernardo na década de 50?

 

Resposta:

Eu era pequeno. Eu não tenho idéia de como era a cidade na década de 50, no final, porque era pequeno. Eu lembro dos limites da cidade. A cidade ia até o Baeta, isso era o limite final. Do outro lado ia até onde é a Volkswagen, um pouco antes, onde é o João Ramalho. Do outro lado ia até o DER, por causa da construção da Via Anchieta, que se criou a favela do DER. Era isso. Era muito pequena.

 

Pergunta: Quais eram as brincadeiras de infância?

 

Resposta:

Isso era muito legal. A gente não tinha calendário, mas a gente tinha um calendário interno. O ano inteiro era dividido por ciclos e a gente não entendia como era isso. Mas toda criança sabia quando acabava o ciclo das bolinhas de gude e começava o ciclo das pipas e dos papagaios. Quando acabava esse ciclo, vinha o ciclo do pião, peteca. O que era interessante era que o ano inteiro era regido, quase tudo determinado. Parece que o tempo era uma coisa natural, porque quando a gente se enchia de jogar bolinha de gude, já vinha outra coisa, que era o pião. O tempo era determinado pelo fluir de cada brinquedo. A gente não sabia o que era mês, ano. Eu não tinha essa noção. De vez em quando eu via que estava chegando o Natal porque eu tinha a possibilidade de ganhar um presentinho do pai. Eu lembro que a única coisa que eu sabia era o Natal, porque podia ganhar um presente e a festa de São João, que era em junho. Eram os dois extremos: o inverno e o verão. O resto do ano era tudo complementado pelas brincadeiras. Era isso que norteava o tempo, porque calendário não existia. Era o calendário dos jogos e das brincadeiras.

 

Pergunta: Presentes, se ganhava muito ou era só no Natal?

 

Resposta:

Não. Presente era só no Natal e quando no Natal. Às vezes nem no Natal. Era uma situação de escassez muito grande. Hoje se tem uma fartura de todas as coisas. Até falo para os meus filhos que hoje se tem muitas coisas. Hoje se tem não sei quantas mudas de roupa, não sei quantos pares de sapato, dois óculos, três computadores. Naquele tempo não se tinha. A gente convivia com uma escassez muito grande. Era uma escassez de sapato, de um chinelo, que não era nem um chinelo, mas aquele sapato velho que se cortava e se fazia o chinelo. Tinha uma muda de roupa. Na minha infância, sempre lembro disso, que tinha meninos da escola que só tinham uma muda de roupa e a mãe tinha de lavar e ela trancava a criança no quarto enquanto lavava a roupa, para ele poder vestir a mesma roupa. Era um tempo de escassez de dinheiro e de material.

 

Pergunta: E a época da escola, como era?

 

Resposta:

Eu comecei, não havia pré-escola na época e comecei direto na escola Iracema Munhoz, ali na Praça Lauro Gomes. Ali fiz o primeiro ano, depois passei para o colégio São José, depois voltei para a escola Iracema Munhoz.

 

Pergunta: Como eram os professores?

 

Resposta:

Na primeira série era apenas uma professora, dona Dail, minha primeira professora, com quem comecei a aprender a escrever. A lembrança que tenho era de ver muitas crianças chorando. Tinha essa coisa da criança entrar na escola e começar a chorar, porque nunca tinha saído de casa. Eu achava aquilo muito estranho, ver uma criança desesperada. Eu não tive esse problema. O que sentia na escola era que não podia escutar rádio, porque isso era um lado que na minha infância foi muito forte. Tinha o Programa Manoel de Nóbrega, que era humorístico, do meio-dia até duas e meia. Eu lembro que quando fui para a escola, começava à uma hora e ia até as cinco. A minha grande perda foi não poder mais ouvir.

 

Pergunta: Em que emissora?

 

Resposta:

Na Rádio Nacional.

 

Pergunta: Emissoras do ABC você ouvia ou não?

 

Resposta:

Não. Eu não ouvia porque praticamente eu gostava desse programa. À noite eu ouvia A Hora do Brasil, que meu pai de vez em quando ouvia e o programa PRK30, um programa humorístico do Rio de Janeiro. Eu não ouvia. Eu soube que tinha sido inaugurada a Rádio Independência e algumas vezes eu ia a um programa de auditório que eles faziam aos domingos, inclusive onde é a Câmara Antonino Assumpção, em São Bernardo. Ali se fazia o programa de auditório, ou no salão paroquial, mas primeiro foi ali. Eu não ouvia os programas, mas ia lá.

 

Pergunta: E cinemas?

 

Resposta:

A cinema eu ia. Quando eu era adolescente eu fui para Santo André, porque eu cursei por quatro anos o Seminário Franciscano no Parque das Nações. O cinema eram dois, o Cine São Bernardo e o Cine Anchieta. A primeira vez que fui foi ao Cine Anchieta. Era uma coisa muito divertida, porque eu ia à matinê e tinha aquele troca-troca de gibis. Eu gostava muito de ler revistas em quadrinhos, mas minha mãe não deixava muito. Ela era muito católica e achava que aquilo podia desvirtuar.

 

Pergunta: Que personagens eram?

 

Resposta:

Cavaleiro Negro; Flecha Ligeira, de mocinhos e bandidos eram os mais cotados nas trocas. Inclusive era um troca-troca. Eu tinha poucos gibis e quando apareciam aqueles moleques com aquele monte de gibi para trocar, eu botava uns olhos desse tamanho, com inveja. Era uma festa, uma gritaria. A relação que se tinha não era nem um pouco civilizada, mas as pessoas participavam, brincavam, e isso era uma coisa muito interessante, porque era uma festa logo que a gente entrava na sala de cinema até o final. Não tinha muito essa coisa de você assistir, essa coisa da assistência ao espetáculo, mas era uma coisa muito interessante.

 

Pergunta: De que filmes você se lembra?

 

Resposta:

O primeiro filme que vi era O Mundo Perdido. Lembro até hoje de algumas imagens, que por coincidência, mais tarde, anos mais tarde, fui rever na televisão. O filme era muito ruim, mas na memória da infância foi um filme muito interessante. Era um filme bem trash, que o cara entra num buraco na terra e cai no mundo dos dinossauros. Eu lembro que eu arregalei os olhos.

 

Pergunta: Sua família freqüentava a igreja?

 

Resposta:

Todos nós. Eram mineiros religiosos. Eu fui coroinha, cruzadinha, mariano e depois seminarista. Freqüentava a igreja sempre. A religiosidade era muito intensa. Tinha muitos mineiros e italianos aqui, então havia essa religiosidade grande. Uma atmosfera que me lembro muito era na sexta-feira da paixão, que a cidade inteira caía em silêncio. Não se podia gritar, não se discutia, era uma atmosfera religiosa mesmo bastante intensa.

 

Pergunta: E como vocês eram imigrantes, havia mais migrantes de outras regiões?

 

Resposta:

Os nordestinos vieram depois, a partir da indústria automobilística. No começo havia bastantes mineiros aqui, porque em geral os migrantes formam uma espécie de gueto, até como sistema de autodefesa num território desconhecido, eles se juntam. Mas houve depois e em final da década de 50 que vim a conhecer os nordestinos.

 

Pergunta: E tinham muitos italianos?

 

Resposta:

Italianos e espanhóis eram muitos. Eu achava muito esquisito, porque não entendia nada da língua.

 

Pergunta: Você falou que passou um tempo em Santo André. Como foi isso?

 

Resposta:

Em 1963 estava na escola, no quarto ano, e passou um padre convidando as crianças que quisessem ingressar no seminário. Aí, família religiosa, eu falei para a minha mãe e entrei em 1964 no Seminário Seráfico no Parque das Nações e fiquei lá até 1968. Foi um momento muito interessante na minha formação. Havia um estudo mais sistemático do que o que eu tinha como pré-adolescente e isso foi uma coisa bastante interessante, e que tem a ver bastante com a minha formação. Esses quatro anos que passei lá influenciaram a minha formação posterior.

 

Pergunta: O que você lembra de Santo André nesse período?

 

Resposta:

Nesse período eu lembro de Santo André se expandindo. O Parque das Nações, onde estava o seminário, ainda fazia parte do complexo urbano. Era um pouco afastada da periferia de Santo André, mas ainda fazia parte. Depois o seminário foi um pouco mais longe, para o Parque Novo Oratório, e aí aquilo era a periferia se formando mesmo. As imagens são de estradas todas de terra, casas de alvenaria, mas bem grosseiras, sem reboque, sem nada e casas espaçadas. Não era como é hoje, onde a gente passa hoje e está tudo urbanizado. A imagem que tenho é essa, a cidade começando a se espalhar além dos limites.

 

Pergunta: Havia enchentes?

 

Resposta:

Eu peguei uma enchente grande em 1968, ainda no seminário e a gente veio estudar no Américo Brasiliense. Foi uma enchente muito grande do Tamanduateí, que encheu Santo André inteira, tanto que eu e outro rapaz tivemos que voltar para o seminário a pé, enfrentando enchente.

 

Pergunta: O Américo Brasiliense é no centro?

 

Resposta:

No centro de Santo André. Eu freqüentei o Américo Brasiliense um ano, onde fiz o primeiro ano do clássico. O clássico era o ensino médio na época.

 

Pergunta: Essa escola é uma referência?

 

Resposta:

Sim. Aqui para o ABC, para Santo André especialmente. É tanto uma referência como é o João Ramalho para São Bernardo.

 

Pergunta: Quando você estudava em Santo André, você ainda morava em São Bernardo?

 

Resposta:

Eu ficava interno em Santo André e só saía nas férias, no período de julho e no final do ano.

 

Pergunta: Você tinha saudades da família?

 

Resposta:

É gozado. Criança é muito na rolagem dos acontecimentos. A gente tinha saudade, mas criança funciona muito em turma, em grupo, em renca. Eu chego lá, até me lembro da imagem, tinha a Igreja do Bonfim aqui, um paredão enorme onde era a entrada do seminário, com uma estátua enorme de Santo Antônio, que tem até hoje lá. Quando fui chegando de ônibus lá, me deu um aperto no coração, foram me levar meu irmão Fernando e minha mãe, e me deu um aperto no coração porque parecia uma prisão. Era um prédio todo fechado e pensei em que bobagem eu fiz. E me deu vontade de chorar. Quando a gente entrava tinha o parlatório que era uma sala para visitas, e o padre chegou e foi mostrar para nós o seminário. Eu entrei num corredor escuro, onde tinha as salas de aula. Parece que você está entrando mesmo numa tumba. Depois foi melhorando e quando ele abriu uma porta eu vi um enorme campo de futebol e eu abri um sorriso, porque era fanático por futebol. E lá tinha um monte de seminaristas jogando, inclusive alguns que estavam entrando junto comigo, então tendo uma bola e uma turma, estava em casa e com a família. Para a criança a família é mais uma referência, porque ele se entende mais com a turma dele, com a brincadeira.

 

Pergunta: E a educação que você teve lá?

 

Resposta:

Era uma educação às vezes rígida, às vezes desnecessariamente rígida. Eram vários padres e tinha um que era mais maleável, mas era aquela educação que era desnecessariamente rígida. O único problema era esse, que eu via no seminário, nesses momentos que passei, que eram esses momentos de rigidez excessiva. E eram poucos momentos. E também uma maldita sopa de feijão, que era muito ruim, que era às terças-feiras, um dia que gostaria de riscar da semana, por causa da maldita sopa.

 

Pergunta: E o que você fazia na área artística, teatral?

 

Resposta:

Não tinha muito disso não. Era muito mais oração e estudo, que era a base. Havia, às vezes, algumas representações teatrais que a gente assistia, que o pessoal mais velho fazia. O que tinha eram jogos. De trabalho, havia alguns festivais que se fazia, mas isso mais tarde. A vida cultural não era muito intensa. Sempre digo que a Ordem Franciscana tem dois lados, um lado que é muito intelectual, de grandes intelectuais mesmo, e um lado que é muito simplório. Esse seminário ficava nesse meio termo. No Rio de Janeiro tem um Seminário Franciscano que é referência intelectual. O meu não era um dos piores.

 

Pergunta: Você era bem jovem nessa época, mas você se lembra do golpe de 1964, das operações da repressão?

 

Resposta:

Eu me lembro do golpe, mas não sabia das implicações que isso tinha, o que significava. A infância é um pouco fechada, como se fosse uma redoma. Eu me lembro, estava conversando com meu irmão e a gente estava falando da infância e ele diz que não conseguia imaginar os problemas que os pais tinham. Ele estava falando da migração, porque ele veio de Minas para cá e ele fala que para ele era tudo festa. Quando chegaram aqui, eles não tinham nada, não tinham móveis e tal, e dormiam em cima de jornais, direto no assoalho, cobertos com algumas roupas que tinham e para ele estava muito bom. Ele não tem lembranças ruins disso. Talvez minha mãe e meu pai imaginassem a coisa terrível que seria isso, mas as crianças não.

 

Pergunta: Você saiu do seminário e não quis continuar nos estudos franciscanos?

 

Resposta:

Não, porque 1968 era uma época de mudanças. Eu fui convidado a sair do seminário. Naturalmente eu era rebelde, e muito rebelde.

 

Pergunta: Por que você saiu?

 

Resposta:

Eram idéias, comportamento, já tinha chegado no esgotamento.

 

Pergunta: Você foi fazer o quê?

 

Resposta:

Eu fiquei meio perdido, porque fiquei a adolescência inteira. Eu saí de São Bernardo, e aí não tive continuidade, os amigos de infância mudaram e os amigos que eu tinha no seminário eram de outras cidades, então isso eu senti bastante, esse retorno. Mas aí a coisa foi normalmente, com o trabalho. O que me centrou objetivamente nessa coisa de grupo foi o teatro realmente. Isso foi o que me deu o eixo, porque eu não sabia o que ia fazer. No seminário eu pude desenvolver isso. Eu tinha um gosto pela literatura, e como todo adolescente, um gosto pela poesia.

 

Pergunta: O que você lia?

 

Resposta:

Os autores escolares. O prazer mesmo da leitura contínua veio depois. Mesmo no seminário eu lia os livros escolares. Eu lembro dos livros de Graciliano Ramos que me marcaram bastante, que me deram uma vontade de escrever.

 

Pergunta: Você começou a fazer teatro quando?

 

Resposta:

Em 1971, porque lá em casa a gente vivia um pouco esse ambiente de teatro. Dois irmãos e uma irmã participaram do Regina Paces. Eu sabia, conhecia essa linguagem, tinha ido ao circo, essa coisa toda. Tinha muitos circos na época.

 

Pergunta: Conta um pouco do circo, onde eles ficavam?

 

Resposta:

Eles não tinham lugar. Lembro que onde hoje é o Paço Municipal havia um espaço muito amplo lá, não tinha o Paço ainda, e lá ficavam os circos, os parques de diversões e tal. Era o lugar. Não sei se era o único, mas era um dos lugares.

 

Pergunta: O circo era importante nessa época?

 

Resposta:

Sim. Eu gostava demais. Hoje, estudando essa história do circo, a gente vê a importância que teve o circo, como meio de veiculação cultura. O circo teve uma importância fundamental para o país. O circo que levou pela primeira vez Shakespeare. Os grandes clássicos eram levados pelo circo. Talvez essa coisa, o primeiro impacto dramático que tive foi no circo, em sombra chinesa, quando vi uma cena de um melodrama de um marido, que por causa de uma amante, apunhala a própria mulher grávida, na barriga. O circo tinha tudo, mas essa cena que mais me chamou a atenção. Era em sombra chinesa, que é quando os atores ficam por trás e é projetada uma sombra na tela. Como era uma cena muito forte, violenta, eles mostraram em sombra chinesa. Teve um grande impacto dramático. Isso me marcou porque até hoje me lembro. Não me lembro do resto do espetáculo, mas dessa cena sim.

 

Pergunta: Você já conhecia teatro pelos seus irmãos?

 

Resposta:

Conhecia, me interessava, assistia algumas coisas, também no seminário vi algumas representações, mas nunca tinha feito. Em 1971 me juntei a um grupo, do João Ramalho, onde eles fundaram o Centro Cultural Guimarães Rosa, em São Bernardo, e foi a partir daí que comecei.

 

Pergunta: Vocês ficavam na escola?

 

Resposta:

Ficou fora da escola. Eram pessoas que tinham se formado no João Ramalho e como tinham essa ligação com cinema, teatro e coisa e tal, eles transformaram isso numa forma de eles continuarem trabalhando. Eles conseguiram um espaço para continuar se reunindo e discutindo e começaram a fazer teatro.

 

Pergunta: Tinha apoio da Prefeitura?

 

Resposta:

A Prefeitura cedeu uma sala para esse grupo que fundou o centro cultural.

 

Pergunta: Quem era do grupo, como vocês trabalhavam?

 

Resposta:

Nesse grupo tinha algumas pessoas que saíram do Regina Paces, como o Reginaldo Freire, que hoje trabalha comigo, é meu parceiro. Ele era de Ribeirão Pires. Tinha Roberto Barbosa, que está em um grupo de Santos, o César Camargo, que é ator de novela, o Calixto, que trabalha em São Paulo e uma série de outras pessoas, que formaram um centro cultural com aulas de capoeira, com exposições, teatro, e projetavam filmes e atividades culturais. Nós fizemos uma peça, que para nós era muito importante, Tempo dos Inocentes, Tempo dos Culpados, que era de um autor alemão, que falava sobre a tortura, naquela época, sobre o estado ditatorial.

 

Pergunta: Vocês tiveram problemas, nos anos 70, com a repressão?

 

Resposta:

Era período de repressão, mas aqui no ABC a repressão não estava muito interessada, aqui, nesse tipo de coisa. Mas a gente mandava para a censura. Era obrigatório. Não era obrigatório vir o censor até aqui para ver os espetáculos. Alguns vinham de São Paulo para cá. Mas quando vinham, a gente não falava todo o texto, essas coisas. Era uma peça muito forte.

 

Pergunta: Vocês se apresentavam onde?

 

Resposta:

A gente se apresentou em Santo André, porque isso era um projeto da Federação de Teatro Amador, que era de uma pessoa muito importante no ABC, que era o Zé Armando. A gente se apresentou em festivais, até em São Paulo, no Paulo Airó, onde fizemos duas apresentações. Principalmente em festivais, porque era o caminho natural de um grupo amador naquela época. A gente fazia uma peça, você se filiava a uma federação do lugar e ia participar de festivais fora. Naquela época o movimento amador era muito forte. A federação de São Paulo era muito forte e organizava vários festivais.

 

Pergunta: Como vocês arrumavam financiamento?

 

Resposta:

Não tinha financiamento. Era vontade de fazer e a gente começava a fazer. A gente trazia roupas de casa. Era movido pela vontade. Nem sabia que tinha de ter produção. Umas pessoas se interessaram em fazer teatro, liam o texto e começavam a fazer. Iam aprendendo.

 

Pergunta: Tinha algum professor, alguém que organizava?

 

Resposta:

Não. A gente sabia que tinha de ter um diretor. Essa primeira peça quem montou foi o Mário César Camargo que era ator com a gente também, e ele que dirigiu. Depois a gente chamou o Sérgio Rosseti, que redirigiu a peça e a gente fez Guerra dos Beatos com o Sérgio Rosseti. Ele foi muito importante para a nossa formação, porque ele dirigiu também o Regina Paces por um bom tempo.

 

Pergunta: (Inaudível)

 

Resposta:

Esse grupo era do centro cultural. Eram pessoas rebeldes, a molecada mais rebelde do Regina Paces que fundou. O Roberto tinha sido do Regina Paces, Mário Sérgio, Calixto, todos do Regina Paces.

 

Pergunta: Qual era a divergência entre vocês e o Regina Paces?

 

Resposta:

Não tinha divergência nenhuma.

 

Pergunta: Você saiu do Regina Paces?

 

Resposta:

Eu não saí, mas as pessoas saíram porque eram moleques; coisas da época. O Assumpção não queria aqueles moleques enchendo o saco dele, questionando isso e aquilo. Eles saíram e formaram esse grupo de teatro.

 

Pergunta: Você se lembra de outros grupos de teatro amadores da região, da Fundação das Artes, do JETA?

 

Resposta:

A Fundação das Artes, nessa época, tinha um trabalho que era muito forte, de referência mesmo, de altíssimo conceito. Era forte como escola de formação, o Timochenco era daqui, o Jéferson Del Rio, e vários outros professores que vinham de São Paulo para a Fundação. Santo André tinha também o GTC, que era esse grupo muito forte e profissional que foi idéia da Heleni Guariba, de montar um grupo na cidade, tinha também o Tear, Teatro de Arte, tinha o nosso grupo, tinha o Regina Paces.

 

Pergunta: Vocês se falavam, assistiam às peças?

 

Resposta:

A gente não tinha tanto contato assim. Hoje talvez o contato seja maior, há um cruzamento maior de cidade para cidade. Naquele tempo a comunidade era um pouco estanque. Eu tive mais contato com Santo André nessa época. A gente tinha um grupo aqui, mas a federação era em Santo André, estava sediada em Santo André, e o Zé Armando era de lá. Eu tinha mais ligação com Santo André. O grupo foi montado lá, Tempo dos Inocentes, Tempo dos Culpados, era da federação de lá e depois passou para São Bernardo, o centro cultural abrigou os projetos.

 

Pergunta: No seu grupo havia mulher?

 

Resposta:

Tinha mulheres.

 

Pergunta: Alguma se destacava? Quais eram os papéis delas? Eram os principais?

 

Resposta:

Exceção à regra tinha a Maria Augusta, que era minha mulher na época, a Maria que era a professora. Era uma coisa meio igualitária, porque a gente não tinha, a gente não gostava muito da estrutura hierárquica que o teatro tinha na época, uma das razões pelas quais o pessoal saiu do Regina Paces, o pessoal que era meio anarquista. Não tinha essa hierarquia. Estava todo mundo começando a fazer teatro, ninguém sabia coisa nenhuma e não havia por que ter hierarquia. Então, a mulher também entrava nisso. Quando chega a mulher de um amigo nosso, do Cláudio, a Alda, quando ela fala que ela quer dirigir a peça, então dirija. A gente não sabia se não seria bom uma mulher dirigir uma peça. Ela começou a dirigir, fez um trabalho que era muito legal. Essa Alda era uma mulher muito ativa, está na Bahia agora. Não havia tradição e não há conservadorismo.

 

Pergunta: Ninguém tinha formação teatral profissional? Ninguém tinha estudado?

 

Resposta:

Não. Ninguém tinha estudado. O único que tinha formação era o Sérgio Rosseti, que tinha feito a EAD. Aqui não, nós éramos recém-saídos da escola, do curso médio e que estavam se metendo em fazer teatro.

 

Pergunta: Você falou que a sua mulher também participava do grupo. Você já era casado?

 

Resposta:

Minha mulher na época.

 

Pergunta: Você trabalhava?

 

Resposta:

Sim.

 

Pergunta: Quando você começou a trabalhar?

 

Resposta:

Comecei a trabalhar no Banco de Minas Gerais, em São Bernardo, como office-boy e depois fui trabalhar na Jacuzzi e fui me casar. Eu casei muito novo, com 19 anos e depois fui trabalhar na Eaton. Desde os 17 anos estou trabalhando direto. Eu queria fazer teatro e já estava com essa vontade, porque logo depois que casei já comecei a freqüentar o centro cultural e já comecei a querer me afastar, porque achava que não tinha nada a ver comigo esse trabalho na indústria. Eu estava muito mais interessado em entrar na área do teatro.

 

Pergunta: Você teve filhos?

 

Resposta:

Tive uma menina, a Vanessa, minha filha mais velha.

 

Pergunta: Você trabalhava e fazia teatro?

 

Resposta:

Sim, porque era muito simples. Nada custava grandes esforços. Eu trabalhava de dia e fazia teatro à noite. A adolescência é uma coisa muito legal, ao contrário da responsabilidade da vida adulta, porque... Lembra que eu falava que na infância o que determinava o meu tempo era o ciclo, o que a vida impunha a gente ia fazendo? Adolescente também tem isso. Tem de trabalhar, então vamos trabalhar. Tem de fazer teatro, vamos fazer teatro. Não existe o peso, o drama. A responsabilidade tem o adulto, que talvez sejam um pouco excessivas e precise disso porque a aposentadoria está lá, esse tipo de planejamento. Na infância e na adolescência é assim, o que vem, vai. Então, eu não via nenhum esforço heróico. Para mim era uma coisa bastante natural.

 

Pergunta: Teve algum momento em que você ficou só com o teatro?

 

Resposta:

Que eu tive de optar não. Que eu consegui. Era isso que eu procurava. Era mais complicado do que hoje sobreviver de uma linguagem artística, porque havia sempre a cobrança das pessoas. A família inteira de trabalhadores mesmo, aquela coisa toda e de repente eu trabalhava pouco. Teve uma época em que eu queria ver se eu conseguia fazer alguma coisa na área de teatro, quando o grupo quis se profissionalizar, eu larguei o emprego. Mas aí cheguei numa época em que eu achava que estava marcando passo, estava trabalhando, estava com 25 anos e me dei um prazo, porque já estava muito atraído pela linguagem artística, ou teatro, ou literatura, ou cinema. Aí já era uma coisa existencial, a minha existência dependia disso. Eu me dei um prazo, até os 30 anos queria já estar engrenado em alguma coisa, senão desisto disso, porque não dá para ficar convivendo com essa angústia.

 

Pergunta: Como foi a sua experiência profissional?

 

Resposta:

Foi muito boa, porque eu tinha me dado o prazo de em 5 anos, estava com 25 anos, e com 28 anos eu estréio meu primeiro texto profissional. Isso foi em 1979 no Grupo Mambembe do qual faziam parte o Ednaldo Freire, que foi meu amigo do centro cultural, e o Calixto, que também era do ABC e tinha sido colega dessa época. Foi em 1979 que começo no Grupo Mambembe, que foi fundado em 1977 pelo Carlos Alberto Sofredini, que era um dramaturgo muito bom e diretor também, um ótimo diretor. Ele escreveu os textos e se mudou para a Bahia e o grupo ficou sem dramaturgo, porque os dramaturgos eram muito escassos na época e eu já havia, ainda como amador, já havia entrado na cena da dramaturgia. Já havia escrito um texto, junto com o Roberto, Ednaldo e a Terezinha, e já tinha escrito outros dois textos sozinho. Aí o Calixto me convida, ele era o articulador do grupo, e me convida para escrever uma peça. Eu escrevi e essa foi minha chance.

 

Pergunta: Qual era o nome do texto?

 

Resposta:

Foi Bom Meu Bem. Era uma comédia afetiva. Tinha essa coisa do jovem perante o amor, o sexo e tal. Por sorte ela fez bastante sucesso.

 

Pergunta: Onde foi montada a peça?

 

Resposta:

Foi montada em São Paulo. O grupo era de São Paulo e a gente fez em vários teatros em São Paulo.

 

Pergunta: Você morava aqui ou em São Paulo?

 

Resposta:

Morava em São Bernardo. Nesse ínterim eu já estava fazendo faculdade, já tinha trabalhado em São Paulo, já tinha trabalhado na Gazeta de São Bernardo como redator, aí um amigo meu me chamou para trabalhar numa assessoria de imprensa em São Paulo, depois eu saí e voltei para São Bernardo para fazer a escola de jornalismo aqui na Metodista, isso porque o sindicato começou a exigir que quem trabalhasse na área tinha de ter o registro.

 

Pergunta: Você começou trabalhando?

 

Resposta:

Primeiro fui trabalhar e depois fui para a faculdade. O que coincidiu foi que no final da faculdade, quando estava no último ano, houve essa opção pelo teatro, a chance de estabelecer esse caminho.

 

Pergunta: Em que período você estudou na Metodista?

 

Resposta:

Estudei de 1976 a 1979. No último semestre a peça estreou e eu abandonei tudo. Fui direto para o teatro e estou até hoje. Bobagem que fiz de ter largado depois da faculdade. Eu me arrependo até hoje, mas naquele momento não era bobagem. Era uma opção muito vertical para aquilo.

 

Pergunta: Quando você entrou no Grupo Mambembe?

 

Resposta:

Foi junto com o Mambembe. Ele montou a peça, depois dessa primeira peça veio Cala a Boca, Já Morreu; depois veio a peça Bela Tchau, e a coisa se estruturou mesmo.

 

Pergunta: E você trabalhou nesse grupo durante quanto tempo?

 

Resposta:

Durante dois trabalhos, Foi Bom Meu Bem e Cala a Boca, Já Morreu, que falavam da história dos imigrantes. E aí eu saí do grupo, o Calixto formou um outro grupo e a gente montou Bela Tchau.

 

Pergunta: Você teve participação em algum grupo do ABC como dramaturgo?

 

Resposta:

Eu tive convites do ABC, do próprio Regina Paces. O Assumpção me convidava. Bela Tchau, como teve muita repercussão, mas quem produziu essa peça foi o Regina Paces, o Assumpção, porque o grupo era muito organizado, ele nos emprestou dinheiro para começar a produção da peça. Esse crédito tem de ser dado ao Regina Paces. É até uma coisa estranha, que um grupo amador apóie um grupo profissional. Foi isso que aconteceu.

 

Pergunta: O Assumpção é uma referência na região?

 

Resposta:

Ele é uma referência, foi o fundador da atividade teatral, pelo menos até onde a gente alcança, no ABC. Ele foi muito importante. Discutiu-se muito, o pessoal mais novo brigava como o Assumpção, mas ele era uma referência. Não só o Assumpção, mas o Regina Paces, as peças do Regina Paces iam de um espectro até outro. Elas vão desde um teatro religioso, porque começou com a Paixão de Cristo, como era a tradição dos grupos da época, do circo, fazer essa encenação, até Liberdade, Liberdade, que foi censurada. Eles iam de um espectro a outro, o grupo Regina Paces. Falavam na época que era um grupo conservador, esse negócio todo, mas era um pouco daquilo, que o que não fosse Zé Celso na época, graças ao Senhor, era conservador. O Assumpção foi uma figura muito importante.

 

Pergunta: Havia diferenças entre Oficina, Arena?

 

Resposta:

Eles passam por tudo. É interessante por isso. Não chega ao Oficina, mas eles montaram Ralé, com a Míriam Munis, que foi a diretora, que era um espetáculo muito legal. O Regina Paces fez. Eles montaram Arena Contra Zumbi. Então, era um grupo que estava sintonizado sempre com o seu momento. Isso que era a coisa legal do Regina Paces, que em 1962, aqui numa comunidade extremamente religiosa, esse negócio todo, eles começam com o teatro com a comunidade. Em 1969 estavam montando Liberdade, Liberdade, ao mesmo tempo em que estava sendo montada no Rio de Janeiro. Foi censurada aqui. Quando eu fui assistir à peça aqui, foi aí que conheci o Antonino Assumpção, ali no salão paroquial, quando eu fui assistir, o Assumpção falou que não ia ter mais porque tinha sido censurada.

 

Pergunta: Não teve a peça?

 

Resposta:

Não teve. Eles foram o único grupo amador que montou Jorge Andrade, porque o Jorge Andrade permitiu a montagem da peça dele, porque ele não permitia. Fez um sucesso enorme.

 

Pergunta: Quando entrou a Escola Livre na sua vida?

 

Resposta:

Ela entra desde o começo. Eu comecei em 1987 esse trabalho lá no CTP, com Antunes Filho. Ele me chamou para organizar um núcleo de dramaturgia no CTP, no Sesc. Foi nesse período que começo esse trabalho de discutir, de ensinar dramaturgia. Eu saí do CTP, continuei com esse curso de dramaturgia nas oficinas culturais, mas era um trabalho que não tinha conseqüência. As pessoas escreviam, mas iam fazer o quê? Porque tinham acabado o curso e não tinham ator, esse negócio todo. Foi quando recebi o convite, já estava cansado desse tipo de pedagogia setorizada para dramaturgos, e aí a Taís, que era a coordenadora da Escola Livre, que estava sendo fundada pelo Celso Frateschi, Maria Taís, que é uma baiana da Unicamp, diretora também, e ela foi a primeira coordenadora da Escola Livre, ela foi uma das que pensaram um pouco esse tipo de pedagogia livre, que não existia na época, aí eu fui trabalhar dramaturgia aqui na Unicerpa, isso em 1982, logo no começo da Escola Livre. Começo com dramaturgia aqui e aos poucos esse pensamento do fazer teatral começa a ir ampliando dentro da Escola Livre. Desde o primeiro ano da Escola Livre estou lá e meu trabalho foi crescendo, ampliando essa reflexão sobre uma pedagogia livre, sem hierarquia, que parta sempre daquilo que eu aprendi e é isso que a gente vai determinar, o material de vida dele, de experiência dele que vai determinar o espetáculo final. Até agora esse tipo de relação está dando certo.

 

Pergunta: A gente pede para os depoentes deixarem uma mensagem para as pessoas que vão assistir alguns anos depois, esses atores que podem surgir, falar um pouco da sua experiência no teatro, pode onde começar. Peço que você deixe uma mensagem.

 

Resposta:

A mensagem que poderia deixar é: Faça! Não importa se você saiba ou não, faça. Você vai aprender fazendo. Quer dizer, depois de a gente ter esse impulso de fazer, o estudo é fundamental para saber o que eu faço com esse fazer. Estudo é fundamental, mas não necessariamente o estudo deva vir antes. Não tem de vir o preparo antes de fazer. É essa dialética de fazer e refletir. Quando você for refletir, registre, porque é muito importante. É muito importante esse registro. O trabalho que vocês estão fazendo aqui é de fundamental importância. Reflita, registre. O que a gente fala na Escola Livre é não só fazer, não só produzir, não só ensinar as pessoas que estão lá e aprender com elas, mas é registrar um pouco esses processos para as pessoas que vêm depois, porque a Escola Livre vai acabar em algum momento, fatalmente ela vai acabar, e servir como referencial para as pessoas que vêm. Essa é a mensagem.


Acervo Hipermídia de Memórias do ABC - Universidade de São Caetano do Sul